A Paulista parecia o Saara hoje. Juro. Não sou de reclamar do calor, gosto do sol, nos entendemos muito bem. O céu estava azul e tinha lá umas poucas nuvens. Mas o calor batia arranhando a pele, mesmo na sombra do ponto de ônibus. Abriu uma vaga do banco do ponto de ônibus e sentei automaticamente. Só meio segundo depois percebi que havia uma senhora, uma velhinha ao meu lado, de pé. Olhei bem para o rosto dela e perguntei de maneira autômata se ela queria sentar. Ela disse que não, porque estava espiando o ônibus que poderia deixá-la no Conjunto Nacional, dois pontos adiante. Resolvi ficar sentada, mas não conseguia parar de olhar para ela. Reparem que fiz a pergunta de forma autômata. E o fiz assim porque simplesmente não conseguia tirar os olhos dos óculos que a senhora usava. Retrô, vintage, cor de caramelo, meio oval. LINDOS!
Não resisti e mandei: "Estou aqui namorando seus óculos! São tão lindos!". Ela riu, bateu a bengala no chão e matou: "Têm por baixo, 30 anos! Viu como é bom não jogar as coisas fora?" Rimos juntas e ela entrou no Terminal Princesa Isabel. Pouco depois passou meu ônibus, achei um lugar para sentar e, enquanto lia 'O livro do Boni', minha cabeça passeou por muitos assuntos, mas um deles ficou martelando: é preciso ser marginal para encontrar uma vida mais suave em São Paulo, né? Gente que não se entrega, que não se convence com terraços gourmet, que não naturaliza levar 40min entre um quarteirão e outro, que dá passagem ao pedestre na faixa, que aguenta os xingamentos por tomar essa atitude, gente que vai à feira e espera encontrar uma feira lá, inclusive com bananas sendo vendidas por dúzia, que gosta de tomar cerveja na calçada num dia de calor (ou de frio), que vai a pé à padaria (onde compra pão por unidade), ou à vendinha porque, sim, elas existem, a moçada que cumprimenta o porteiro e os outros pais na porta da escola com o mesmo tratamento, aliás, a moçada que cumprimenta o porteiro e os outros pais já estava bom, enfim, essa gente que na minha vila era chamada de gente normal, sabe? Então, esse tipo de gente está cansando, está entregando os pntos, está desistindo de acreditar que a vida é possível na cidade, na metrópole.
Eu sou desse tipo aí de gente, mais especificamente do tipo de gente que cumprimenta pais e porteiros da mesma forma, porque acredita que gente é gente e fim de papo. E eu sou desse tipo de gente que, embora se encante pelos óculos da velhinha no ponto de ônibus e consiga puxar um papinho saboroso com essa velhinha, está cansada das trombas, das buzizas, dos atropelamentos de ciclistas, da falta de debate sobre a urbanidade, da paranoia da violência (que se for colocada no papel mesmo nem é tão maior assim do que em outros lugares), da prioridade que os carros têm, do olhar espantados quando digo que vou trabalhar de metrô, ou de ônibus. Quando conto que levo meus meninos para a escola de ônibus e que brigo com eles quando não cumprimentam o motorista, o cobrador, ou o porteiro da escola.
Moro aqui há 23 anos - menos que 30, portanto, mas quase lá - e não lembro de São Paulo se mostrar muito diferente disso que descrevi. Aliás, acho até que melhorou em vários aspetos: o centro, o metrô, o trem... não vem daí a minha dor... São Paulo me dói no ponto em que os paulistanos se esquivam de sua cidade, enquanto eu quero abraçá-la, consumi-la, decifrá-la sem medo. A meleca é que não posso fazer isso sozinha, só seria possível se muita gente pensasse assim, visse assim. Mas aí é que mora o tal olhar marginal. Ser outsider já é pesado, sozinho (ou com poucos companheiros) é mais ainda.... Fico me perguntando se aqueles óculos balzaquianos me fariam ver as coisas de outra maneira, de um jeito respeitoso, através do qual a gente não tivesse vontade de jogar tudo fora, mas sim guardar para usar adiante, de um modo totalmente novo. Como me ensinou a velhinha do ponto de ônibus.
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