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terça-feira, 18 de setembro de 2012

CIDADE DOENTE

A desesperança tem um gosto amargo. E foi com esse gosto na boca que acordei. Hoje e nos últimos dias.
A razão é um sentimento estranho, sutil, mas bem espalhado, que minhas antenas captam em São Paulo. Essa cidade aqui é minha casa. Cresci aqui, minha família vive aqui (vá lá, uma parte dela), meu filhos são paulistanos, assim como é paulistano meu projeto de vida. Cheguei em outros tempos, ainda na redemocratização, tudo pronto para a política neoliberal dominar a cidade, o estado e o país.

Tudo bem. Mesmo vindo de Brasília, e de origem baiana, não posso dizer que fui maltratada pela cidade. Ao contrário. O futuro estava aqui e a cidade abria as portas para a minha família. Sem muita cerimônia, sem prestar muita atenção, mas sem colocar entraves mais significativos. Ok, percebi que por aqui tinham umas coisinhas diferentes do que eu estava acostumada: baiano era xingamento, as pessoas votavam no Afif, no Maluf e no Pitta e assumiam isso tranquilamente, e os taxistas eram uma classe a parte, com opiniões conservadoras, pragmáticas e com soluções prontas acabadas para tudo.

Mas ainda assim, havia uma avenida que podia ser trilhada. Dava o maior orgulho dizer para meus amigos do planalto ou para a família espalhada pela orla soteropolitana que eu morava em São Paulo! A USP era nosso horizonte. E para lá fomos todos nós. Graduação, mestrado e doutorado e pós para a irmã mais velha.Tinha uma coisa pulsante aqui, que impelia ao desenvolvimento pessoal. Eu já andava muito de ônibus e tinha a percepção de que as pessoas estavam indo para algum lugar. Tinham metas em mente.

Acontece que eu fui percebendo - ou a coisa toda foi crescendo - que pouco desse tino, desse impulso que move para frente que marca boa parte das pessoas aqui, não estava progredindo em direção ao bem estar geral, à melhoria das condições de vida, em direção a uma cidade ainda mais acolhedora e humana como a que - eu achava ao menos - me recebera anos antes. Surpresa e perplexidade quando entendi que a USP - elogiada pelos estrangeiros, almejada pelos brasileiros de outros estados - causa engulho entre o povo daqui. E ontem, depois da enésima favela queimada, um professor perguntava entre os colegas: "aquela favela já queimou antes, por que deixaram as pessoas voltarem para lá, por que deixaram a favela subir de novo?". Eu achei, tola, que era uma preocupação social, de falta de política pública, de desgoverno. Nada, ele completou antes que eu pudesse sorrir: "Agora é mais um incêndio, viaduto interditado, horas de trânsito para chegar no trabalho". E os colegas em torno concordando. Acho que morro um pouco por dia com declarações assim. Um grupo de neurônios se desliga incrédulo diante de tanta falta de alteridade.

Por fim, o debate entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo. Digam aí o que quiserem, eu - que sou estrangeira aqui e percorri os caminhos mais tortos nessa metrópole, sendo assim quase um ET - percebo que essa terra aqui carece cronicamente de política, no sentido melhor para a palavra. Sonhos, planejamento e execução de uma ideia de cidade. Em algum ponto, a gente foi perdendo o olhar para o futuro, a meta para a cidade, os planos para crescer e continuar metrópole. Não me conformo de terem ceifado isso da gente e que a gente não tenha nem se indignado. Há movimentos de ocupação da cidade, claro. Mas e a projeção para o futuro? Há grupos que fazem essa cidade colorida, dinâmica, surpreendente a cada dia, mas onde estarão e onde queremos estar em 20, 30, 50 anos? A eleição, que ao menos devia trazer essa discussão, emperra na gestão do hoje, nas promessas inviáveis - sabemos que são - e no fortalecimento de que o outro é meu inimigo e devo atravessá-lo para continuar vivendo. Tudo isso, senhores, ativa as minhas papilas gustativas mais do fundo da língua, e me rouba o ar. Para onde vai, São Paulo? E para onde está me levando, cidade sem sonho?


domingo, 26 de agosto de 2012

LIBERDADE JÁ DE MANHÃZINHA

A Liberdade tem um preço. R$ 81,60, no caso.
Verdade. Tirando as passagens de metrô de ida e volta, isso foi o que gastei numa esticada até o bairro japonês com a molecada. A gente tinha que comprar os legumes e as verduras da semana, mas eu estava sem saco para ir à feira e eles sem ânimo para ir ao super-mercado. De repente baixou a inspiração: Vamos para a Liberdade. Lá tem uns mercados incríveis, hoje é dia de feira de artesanato e, de quebra, a gente leva comida japonesa para almoçar. Toparam em menos de 30 segundos, claro.

Vinte minutos depois estávamos no metrô. O caminho para a Liberdade é o trem. É a melhor opção. Embora no domingo seja um pouquinho mais lento, para na porta, é vazio e sustentável. Chegamos cedo, então ainda não estava tudo lotado. As barrcas ainda estavam sendo armadas e o cheiro de camarão frito ainda não dava o ar da graça. Começamos descendo a Galvão Bueno. Parada obrigatória naquele mercado que fica no no. 34. Minha filha traduziu: "Isso aqui é uma perdição". E é mesmo. Enquanto o filho se acabava na escolha dos sushis e dos sashimis, ela ficava em dúvida entre os biscoitos de chocolate, ou de ursinho recheado. Eu me perdi primeiro entre os shimejis e shitakes vendidos por um terço do preço praticado no Pão de açúcar e metade do preço pedido na feira. Depois surtei entre as cerâmicas de servir, de chá, de apoiar o hashi. É muita coisa linda e barata junta.

Tem muita tranqueira também. Coisa misturada. China com Japão, meio Paraguai. Mas é só desviar o olhar e continuar descendo a Galvão Bueno. Voltamos à feirinha, que já estava de pé, atravessamos a cortina de fumaça de camarões fritos (quase irresistível), mas atravessamos rápido o suficiente para não impregnar na roupa. Cada criança ganhou um enfeitezinho de porta. O do filho de peixe, claro. O da filha, de flor, claro! Voltamos para o metrô e desembarcamos em casa cheio de sacolas e imersos nos ares do Japão que habitam nossa cidade. Recomendo!

sábado, 7 de abril de 2012

A DELÍCIA DE SER DO CONTRA

Acho que aprendi com meus pais. Ou nasci assim mesmo. Sei que piorou um pouco depois que casei e piorou bastante depois que tive filhos. O fato é que, cada vez mais, não consigo concordar com verdades taxativas e intransponíveis sobre a vida na cidade. Ok, pode me chamar de privilegiada, porque moro num reino encantado da cidade. Mas não é lugar em si que faz a diferença, é a presença e a atitude do cidadão.

Veja bem: São Paulo é uma cidade para se curtir a pé? Claro que não (ainda mais o meu enladeirado bairro). Pois eu fui ao teatro a pé e voltei a pé com minha filha. Pode falar de novo que é um privilégio ter um teatro tão perto. É mesmo, por isso faço uso dele. Adoro. Outra coisa, São Paulo custa caro. Fato. Essa cidade perdeu o juízo na hora de etiquetar produtos e serviços. Mas o teatro foi na faixa, no III Festival de Teatro Infantil do Centro da Terra. Ou seja, quando a gente quer, acha alternativas.

Aí vem a filosofia. Quando a gente anda a pé, se sente no direito sagrado de ocupar a rua e desafiar os carros (por que eles e não eu?). A calçada da rua do teatro é cheia de enormes árvores que ocupam toda a largura do passeio. Não dá para passar ali, de forma que temos de ir pelo asfalto mesmo. E os carros tem de esperar. Simples assim. Naquela rua - ao menos ali - são as pessoas que mandam. E o fato de o teatro ser de graça, iguala as pessoas. Está todo mundo em pé de igualde, de forma que ninguém se impõe ao outro com os arroubos de poder que o "eu paguei, então tenho o direito" faz subir à cabeça.

Por fim, há a arte. Antes das peças, o teatro oferece uma oficina de confecção de máscaras, origamis, fantoches para teatro de sombras. De graça, à vontade, uma hora inteira para adultos e crianças brincarem de desenhar, pintar, recortar, colar e montar. Ou só ficar olhando, como eu fiz. Arte é um pouco como a literatura e faz a gente tratar dos grotescos, dos horríveis, dos malévolos, para chegar ao belo, ao surpreendente, ao mais humano. E assim, com espíritos elevados, crianças e adultos seguem para o espetáculo tão bonito. Jogos de projeção, humor, cores e luzes, um cenário lindo e uma história encantadora. De graça, que começa na hora marcada, e faz muito bem a todos ali.

Depois das palmas, caminhamos até a padaria, enfrentamos uma empadinha de frango, compramos o pão e o leite do café da manhã de amanhã e voltamos andando para casa, comentando a peça e a alegria de com tão pouco ficarmos tão contentes. O único esforço é seguir nadando contra a correnteza de que devemos ficar trancados em nossos bunkers eletrificados e com segurança 24h, porque São Paulo é uma cidade inóspita e perigosa, sem opção. Acho que ser do contra é um ser um tanto livre para dizer: essa cidade aí não me interessa, não me pertence, não a alimento. Minha cidade é outra e cabe tudo isso que falei, com direito a escolha. Ser marginal pode ser, portanto, uma decisão verdadeiramente delicada.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ÓCULOS DE 30 ANOS ATRÁS

A Paulista parecia o Saara hoje. Juro. Não sou de reclamar do calor, gosto do sol, nos entendemos muito bem. O céu estava azul e tinha lá umas poucas nuvens. Mas o calor batia arranhando a pele, mesmo na sombra do ponto de ônibus. Abriu uma vaga do banco do ponto de ônibus e sentei automaticamente. Só meio segundo depois percebi que havia uma senhora, uma velhinha ao meu lado, de pé. Olhei bem para o rosto dela e perguntei de maneira autômata se ela queria sentar. Ela disse que não, porque estava espiando o ônibus que poderia deixá-la no Conjunto Nacional, dois pontos adiante. Resolvi ficar sentada, mas não conseguia parar de olhar para ela. Reparem que fiz a pergunta de forma autômata. E o fiz assim porque simplesmente não conseguia tirar os olhos dos óculos que a senhora usava. Retrô, vintage, cor de caramelo, meio oval. LINDOS!

Não resisti e mandei: "Estou aqui namorando seus óculos! São tão lindos!". Ela riu, bateu a bengala no chão e matou: "Têm por baixo, 30 anos! Viu como é bom não jogar as coisas fora?" Rimos juntas e ela entrou no Terminal Princesa Isabel. Pouco depois passou meu ônibus, achei um lugar para sentar e, enquanto lia 'O livro do Boni', minha cabeça passeou por muitos assuntos, mas um deles ficou martelando: é preciso ser marginal para encontrar uma vida mais suave em São Paulo, né? Gente que não se entrega, que não se convence com terraços gourmet, que não naturaliza levar 40min entre um quarteirão e outro, que dá passagem ao pedestre na faixa, que aguenta os xingamentos por tomar essa atitude, gente que vai à feira e espera encontrar uma feira lá, inclusive com bananas sendo vendidas por dúzia, que gosta de tomar cerveja na calçada num dia de calor (ou de frio), que vai a pé à padaria (onde compra pão por unidade), ou à vendinha porque, sim, elas existem, a moçada que cumprimenta o porteiro e os outros pais na porta da escola com o mesmo tratamento, aliás, a moçada que cumprimenta o porteiro e os outros pais já estava bom, enfim, essa gente que na minha vila era chamada de gente normal, sabe? Então, esse tipo de gente está cansando, está entregando os pntos, está desistindo de acreditar que a vida é possível na cidade, na metrópole.

Eu sou desse tipo aí de gente, mais especificamente do tipo de gente que cumprimenta pais e porteiros da mesma forma, porque acredita que gente é gente e fim de papo. E eu sou desse tipo de gente que, embora se encante pelos óculos da velhinha no ponto de ônibus e consiga puxar um papinho saboroso com essa velhinha, está cansada das trombas, das buzizas, dos atropelamentos de ciclistas, da falta de debate sobre a urbanidade, da paranoia da violência (que se for colocada no papel mesmo nem é tão maior assim do que em outros lugares), da prioridade que os carros têm, do olhar espantados quando digo que vou trabalhar de metrô, ou de ônibus. Quando conto que levo meus meninos para a escola de ônibus e que brigo com eles quando não cumprimentam o motorista, o cobrador, ou o porteiro da escola.

Moro aqui há 23 anos - menos que 30, portanto, mas quase lá - e não lembro de São Paulo se mostrar muito diferente disso que descrevi. Aliás, acho até que melhorou em vários aspetos: o centro, o metrô, o trem... não vem daí a minha dor... São Paulo me dói no ponto em que os paulistanos se esquivam de sua cidade, enquanto eu quero abraçá-la, consumi-la, decifrá-la sem medo. A meleca é que não posso fazer isso sozinha, só seria possível se muita gente pensasse assim, visse assim. Mas aí é que mora o tal olhar marginal. Ser outsider já é pesado, sozinho (ou com poucos companheiros) é mais ainda.... Fico me perguntando se aqueles óculos balzaquianos me fariam ver as coisas de outra maneira, de um jeito respeitoso, através do qual a gente não tivesse vontade de jogar tudo fora, mas sim guardar para usar adiante, de um modo totalmente novo. Como me ensinou a velhinha do ponto de ônibus.