A razão é um sentimento estranho, sutil, mas bem espalhado, que minhas antenas captam em São Paulo. Essa cidade aqui é minha casa. Cresci aqui, minha família vive aqui (vá lá, uma parte dela), meu filhos são paulistanos, assim como é paulistano meu projeto de vida. Cheguei em outros tempos, ainda na redemocratização, tudo pronto para a política neoliberal dominar a cidade, o estado e o país.
Tudo bem. Mesmo vindo de Brasília, e de origem baiana, não posso dizer que fui maltratada pela cidade. Ao contrário. O futuro estava aqui e a cidade abria as portas para a minha família. Sem muita cerimônia, sem prestar muita atenção, mas sem colocar entraves mais significativos. Ok, percebi que por aqui tinham umas coisinhas diferentes do que eu estava acostumada: baiano era xingamento, as pessoas votavam no Afif, no Maluf e no Pitta e assumiam isso tranquilamente, e os taxistas eram uma classe a parte, com opiniões conservadoras, pragmáticas e com soluções prontas acabadas para tudo.
Mas ainda assim, havia uma avenida que podia ser trilhada. Dava o maior orgulho dizer para meus amigos do planalto ou para a família espalhada pela orla soteropolitana que eu morava em São Paulo! A USP era nosso horizonte. E para lá fomos todos nós. Graduação, mestrado e doutorado e pós para a irmã mais velha.Tinha uma coisa pulsante aqui, que impelia ao desenvolvimento pessoal. Eu já andava muito de ônibus e tinha a percepção de que as pessoas estavam indo para algum lugar. Tinham metas em mente.
Acontece que eu fui percebendo - ou a coisa toda foi crescendo - que pouco desse tino, desse impulso que move para frente que marca boa parte das pessoas aqui, não estava progredindo em direção ao bem estar geral, à melhoria das condições de vida, em direção a uma cidade ainda mais acolhedora e humana como a que - eu achava ao menos - me recebera anos antes. Surpresa e perplexidade quando entendi que a USP - elogiada pelos estrangeiros, almejada pelos brasileiros de outros estados - causa engulho entre o povo daqui. E ontem, depois da enésima favela queimada, um professor perguntava entre os colegas: "aquela favela já queimou antes, por que deixaram as pessoas voltarem para lá, por que deixaram a favela subir de novo?". Eu achei, tola, que era uma preocupação social, de falta de política pública, de desgoverno. Nada, ele completou antes que eu pudesse sorrir: "Agora é mais um incêndio, viaduto interditado, horas de trânsito para chegar no trabalho". E os colegas em torno concordando. Acho que morro um pouco por dia com declarações assim. Um grupo de neurônios se desliga incrédulo diante de tanta falta de alteridade.
Por fim, o debate entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo. Digam aí o que quiserem, eu - que sou estrangeira aqui e percorri os caminhos mais tortos nessa metrópole, sendo assim quase um ET - percebo que essa terra aqui carece cronicamente de política, no sentido melhor para a palavra. Sonhos, planejamento e execução de uma ideia de cidade. Em algum ponto, a gente foi perdendo o olhar para o futuro, a meta para a cidade, os planos para crescer e continuar metrópole. Não me conformo de terem ceifado isso da gente e que a gente não tenha nem se indignado. Há movimentos de ocupação da cidade, claro. Mas e a projeção para o futuro? Há grupos que fazem essa cidade colorida, dinâmica, surpreendente a cada dia, mas onde estarão e onde queremos estar em 20, 30, 50 anos? A eleição, que ao menos devia trazer essa discussão, emperra na gestão do hoje, nas promessas inviáveis - sabemos que são - e no fortalecimento de que o outro é meu inimigo e devo atravessá-lo para continuar vivendo. Tudo isso, senhores, ativa as minhas papilas gustativas mais do fundo da língua, e me rouba o ar. Para onde vai, São Paulo? E para onde está me levando, cidade sem sonho?
Seu desabafo de "quase-forasteira" é o mesmo de uma pessoa que nasceu, cresceu e sempre teve a certeza de que essa era a sua cidade: eu. Na realidade, apesar de sempre ter as portas abertas, São Paulo sempre teve um viés conservador, mas nunca vi nada dessa forma (pelo menos nos meus 30 e poucos anos de vida, eu não me lembro). E isso deixa a gente doente, esse mal que acomete a cidade também contamina a gente com esse gosto amargo e a desesperança que você citou. Como eu disse hoje lá no Facebook, é bom saber que não estou só: assim a gente pode unir nossas forças pra tentar fazer essa cidade um pouco menos indigna diante de tanta gente amarga, egoísta e digo ignorante, mesmo. Porque é uma ignorância voluntária, não é aquela de quem não teve escolha.
ResponderExcluirQuanto ao debate, também tive a mesma impressão: nos poucos momentos que assisti, tudo era macro-política, informações irrelevantes e propostas mirabolantes. A única coisa que faltou ao debate foi o debate em si. Enquanto SP for peça de xadrez político, menos esperança eu tenho de que essa cidade vai ter jeito.
Cidade sem sonho...
ResponderExcluirMarcelo Freixo, num acalorado debate sobre educação aqui no Rio, que está em frangalhos, disse algo como: "As escolas cariocas precisam ensinar a sonhar". Mesmo se eu não o conhecesse, acho que votaria nele só por causa dessa frase.
Beijo, minha flor. E não deixe de sonhar.
Elisa, achei seu blog pelo Facebook e não poderia deixar de elogiar seus textos. Você é um poço de sabedoria e faz muito bem em compartilhar sua vivência nesse espaço tão fofo e acolhedor.
ResponderExcluirAgora sobre esse texto em especial... Já faz uns meses que a ideia de "Para onde vai, São Paulo? E para onde está me levando, cidade sem sonho?" vem perturbando minha cabeça. Aqui em SP eu vejo as pessoas tão mergulhadas nessa ritmo frenético - naquela coisa de "engatar a primeira e sair voando", sabe? - e vejo que não quero essa realidade de sobreviver - e não viver -, que é tão fria e dura.
Comecei a achar até que era a tal crise dos 20 e poucos anos mas aí, conversando com uma galera e lendo textos como o seu, percebi que não estou sozinha. São Paulo é um lugar incrível mas o lado podre está ofuscando o lado lindo, e isso me chateia demais, me deixa frustrada.
A vontade de continuar na selva de pedra ainda fala mais alto mas já começo a pensar em ir para outro lugar, um lugar mais seguro, mais acolhedor, mais calmo... E vejo que uma grande parte das pessoas que eu conheço compartilham dessa mesma vontade.
Sem falar na sensação de impotência perante ao mundo da política... Mas isso já é assunto para outra conversa. hehehe :)
Beijo grande!
Isa, tem um valor enorme, talvez você nem imagine, um comentário elogioso vindo de uma aluna. Então, primeiramente, obrigada, de coração. Acho que esse sentimento de "estou quase desistindo de São Paulo" está cada vez mais presente na minha vida e na vida de um monte de gente que eu conheço. A meleca é que a própria loucura da nossa vida faz a gente achar que sofre sozinho. Bem, pelo meu texto e pelos comentários todos, você já viu que não está sozinha.... Também não tenho coragem de deixar isso aqui, por outro lado, sinto muito na minha pele a desumanidade da cidade. Idealmente, o caminho é mudar a cidade.... acho que devemos ir por aí. Quem sabe a gente não espalhe mais amor por São Paulo, né?
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