Acho que aprendi com meus pais. Ou nasci assim mesmo. Sei que piorou um pouco depois que casei e piorou bastante depois que tive filhos. O fato é que, cada vez mais, não consigo concordar com verdades taxativas e intransponíveis sobre a vida na cidade. Ok, pode me chamar de privilegiada, porque moro num reino encantado da cidade. Mas não é lugar em si que faz a diferença, é a presença e a atitude do cidadão.
Veja bem: São Paulo é uma cidade para se curtir a pé? Claro que não (ainda mais o meu enladeirado bairro). Pois eu fui ao teatro a pé e voltei a pé com minha filha. Pode falar de novo que é um privilégio ter um teatro tão perto. É mesmo, por isso faço uso dele. Adoro. Outra coisa, São Paulo custa caro. Fato. Essa cidade perdeu o juízo na hora de etiquetar produtos e serviços. Mas o teatro foi na faixa, no III Festival de Teatro Infantil do Centro da Terra. Ou seja, quando a gente quer, acha alternativas.
Aí vem a filosofia. Quando a gente anda a pé, se sente no direito sagrado de ocupar a rua e desafiar os carros (por que eles e não eu?). A calçada da rua do teatro é cheia de enormes árvores que ocupam toda a largura do passeio. Não dá para passar ali, de forma que temos de ir pelo asfalto mesmo. E os carros tem de esperar. Simples assim. Naquela rua - ao menos ali - são as pessoas que mandam. E o fato de o teatro ser de graça, iguala as pessoas. Está todo mundo em pé de igualde, de forma que ninguém se impõe ao outro com os arroubos de poder que o "eu paguei, então tenho o direito" faz subir à cabeça.
Por fim, há a arte. Antes das peças, o teatro oferece uma oficina de confecção de máscaras, origamis, fantoches para teatro de sombras. De graça, à vontade, uma hora inteira para adultos e crianças brincarem de desenhar, pintar, recortar, colar e montar. Ou só ficar olhando, como eu fiz. Arte é um pouco como a literatura e faz a gente tratar dos grotescos, dos horríveis, dos malévolos, para chegar ao belo, ao surpreendente, ao mais humano. E assim, com espíritos elevados, crianças e adultos seguem para o espetáculo tão bonito. Jogos de projeção, humor, cores e luzes, um cenário lindo e uma história encantadora. De graça, que começa na hora marcada, e faz muito bem a todos ali.
Depois das palmas, caminhamos até a padaria, enfrentamos uma empadinha de frango, compramos o pão e o leite do café da manhã de amanhã e voltamos andando para casa, comentando a peça e a alegria de com tão pouco ficarmos tão contentes. O único esforço é seguir nadando contra a correnteza de que devemos ficar trancados em nossos bunkers eletrificados e com segurança 24h, porque São Paulo é uma cidade inóspita e perigosa, sem opção. Acho que ser do contra é um ser um tanto livre para dizer: essa cidade aí não me interessa, não me pertence, não a alimento. Minha cidade é outra e cabe tudo isso que falei, com direito a escolha. Ser marginal pode ser, portanto, uma decisão verdadeiramente delicada.
Texto mamão, do jeito que a gente gosta.
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