Não sei quem veio primeiro, meu pai ou a Flip a me apresentar os novos-africanos da literatura. Pepetela, Agualusa (que ainda não li, mas conheci na Livraria da Vila) e Mia Couto. Entraram em minha vida fazendo estrago, mexendo com a maneira como eu falava e até na ordenação dos pensamentos. Coisa parecida, só com Guimarães Rosa em tempos de vestibular. Para falar a língua da vida real, tinha que pensar. Se não, saía meio Guimarães. Coisa incrível. Mas fui lendo as maluquices e os mundos imaginários dos africanos e conhecendo aquilo tão bem... entre um e outros, li Ryszard Kapuściński, com seu Ébano e outros escritos, livros-reportagem que me contavam mais e mais daquela África tão distante, mas tão conhecida minha. Sobre o único objeto que a maioria dos africanos têm (uma panela, um balde, uma garrafa) e como se agarram àquilo, com toda a força, a ponto de se deixar morrer abraçado ao camelo no deserto quando o animal se vai primeiro. Falava-me da única refeição do dia e dos olhos da fome. Falava da corrupção e da falta de um projeto de nação. De como foi cruel a colonização do século 19 e de como isso deixa marcas profundas nos países, claro, mas nas pessoas. Essas sim, marcadas por crenças difíceis de arrancar. De um lado, os ficcionistas abrindo Jesusalém, um mundo imaginário, quase onírico. Do outro, o repórter rasgando as mazelas. Eu sempre me soube um tanto africana, por origem e por respeito, talvez até mais por respeito. Fui aos terreiros de Candomblé levada por meus pais, vi as fotos de Vergè e as artes de Caribé por toda Salvador. E cresci em Salvador vendo as meninas trançarem os cabelos e andarem com latas na cabeça. E não faz tanto tempo assim.
E enquanto eu pensava na vida separando as espinhas da sardinha metida no cuscuz, finalmente entendi que, brasileira que sou, vivo numa tríade, cada vértice num continente. Ponta aqui, ponta na África, ponta em Portugal. Cada ponto unido por um fio, que talvez seja a língua comum, talvez a história que testemunhamos e construímos todos juntos. Tenho, portanto, três origens, três pertenças. Posso abraçar num golpe só o que fui e o que sou. E que só fazem sentido, se juntas. Reconheci que ir à Portugal será como reverenciar uma de minhas minhas pátrias, tomar posse de algo que sempre foi meu, mas sobre o qual nunca pude estender meus olhares. A minha África sim, essa já me habita desde pequena. Faltava meu Portugal. Sinto como aquelas pessoas que ficam décadas sem voltar ao lugar de origem e resolve voltar. É preciso passar na casa de cada um dos parentes ainda vivos, que são o elo para o passado e a quem se honra na projeção do futuro. Faltava honrar esse Portugal que há em mim, minha terra, minha origem e pertencimento. Quero ouvir o português que vem da Europa, salgado pelo mar, amargo pelas agruras de não se ser mais um império, mas doce e elegante por tanto tempo curtindo. E conhecer - como disse minha amiga Lu Porto - esse velho amigo, com quem me correspondo há tanto tempo sem nunca ter abraçado.
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