quarta-feira, 17 de agosto de 2011

COMIDA PARA ABRANDAR TRISTEZA

Os nutricionistas e vigilantes de plantão que me desculpem, mas a gente come sim para aplacar as mazelas da vida. E funciona, viu? Mas precisa seguir umas regras. Por exemplo, azedo não ameniza as decepções. Doce sim, mas não muito doce. Doce na medida do chantilly, quando comparado com seu primo marshmellow. Dá para pescar a sutileza entre um e outro? O primeiro se espalha como espuma pela boca, arrumando a cama para os demais sabores se apresentarem. Ao agir assim, o chantilly, ao mesmo tempo que adoça o paladar na medida, cria uma camada de proteção, reduzindo um tiquinho a percecepção dos gostos. Aí o doce fica menos doce e o azedo, menos azedo. Já o marshmellow (não tem versão em português para essa palavra, tipo marchimelo?) não. Cheio de sortilégios, e diferentemente da espuma, o marshimellow não dá lugar para ninguém, chega arrasando, impondo seu dulçor a tudo, sem discussão. O resultado é que o azedo da torta de limão - num exemplo clássico - se irrita e fica mais azedo, liberando pontas e arestas, sobre o que falarei no próximo parágrafo. Para matar esse efeito colateral, a gente come mais marshmellow. E mais um pouquinho. Até enjoar. Porque ainda tem isso. O primo do chantilly enjoa. É a maneira dele se fazer presente em cada uma das etapas da digestão. É um autoritário.


Doce, mas suave

Como já aparecia no spoiller, o paladar é um servo de dois senhores: do gosto mesmo (doce, amargo, azedo, salgado e aquele de nome esquisito tipo ajinomoto), e da textura. Sim, porque a textura também contribui para a percepção do gosto das coisas. Pão de mel é doce não só porque tem mel e chocolate, mas porque é macio, redondo na língua. O conforto que o doce traz tem a ver, portanto, com essa sensação de carinho na língua, no céu da boca. A entrada do doce é delicada, suave, amorosa. Ao contrário do azedo e do salgado. Um tanto estranha é a presença do amargo. E não deve ser só comigo. Amargo é como um carvalho, denso, pesado, presente. Ocupa a boca toda, se impõe, mas de maneira elegante, madura, cheirosa até. Diferente do azedo que grita e do salgado que coça, o amargo fala baixo. Mas toca fundo. Gostar do amargo é saber conviver e até achar bonito um pouco de dor, de sofrimento. É convidar o que deveria causar medo para entrar, oferecer um chá e conviver com respeito. Quando o amargo resolve flertar com o doce, convidá-lo para uma dança (que não pode ser outra se não uma valsa), acontece um dos casamentos mais bem sucedidos do mundo gastronômico, algo como chocolate meio amargo, chocolate do padre, brigadeiro com um toque de café. Não à toa, o petitfour que vem no pires do café expresso é tão querido.


Elegância do amargo

É esse querer bem todo serve de antídoto para a tristeza. Some o quente e amargo do café , com o doce do açúcar, e a presença sutil e delicada do chantilly. O companheiro de dança ideal aqui é bolo simples, de fubá, por exemplo (e se tiver pedacinhos de goiabada, tanto melhor). Ora um ora outra na boca e lá dentro (mesmo que tímido para se mostrar ao público) nasce um sorrisinho maroto, agradecido pelo carinho.

O balé do fubá com a goiabada

6 comentários:

  1. Espetacular texto! A sua descrição dos tipos de gostos é perfeita, e a do amargo ficou bem poética. Comer é bom demais, e aplaca a tristeza, sim. Beijos.

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  2. texto perfeito, que veio a calhar :)

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  3. Esse texto me deu água na boca! Delícia!
    Elisa, sabe quem eu acho meio autoritária? A azeitona, quando está presente só dá ela!
    Mas, sozinha, adoro, não consigo parar de comer!

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  4. Eu amooooo torta de limão, justamente por causa desse encontro do doce com azedo. É perfeito. Bittersweet, como a vida.

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